sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Filho das Profundezas [Semana 25]

Autor: Marco Fischer
Parte XXV - Abismo

Violka afundava na escuridão de Ula-Yhloa, mergulhando entre as glórias afogadas do Império de Lemuria. Estátuas de heróis esquecidos eram sua plateia enquanto descia até um salão submerso, ainda maior do que aquele onde havia enfrentado o monstro agora soterrado pelas ruínas.

Logo Violka não mais prendia a respiração ou sentia a água gelada em seu corpo. Estava suspensa nas trevas, diante de algo tão imenso que ela não conseguia vislumbrar de uma só vez. Mas não estava com medo. Sempre soube que não era mais do que um pequeno ponto diante da vastidão do oceano, e isso não a impedia de navegar através dele.

Era isso que precisava fazer agora, deixar sua consciência fluir livremente como um pássaro através daquele abismo. Era como se manter lúcida em um pesadelo, embora fosse mais vívido e ela soubesse que não tinha muito tempo.

Naquele turbilhão, ela via passar os últimos dias da Lemuria. Cidades-ilha de pedra e cristal eram tragadas pelas ondas e por seres tão antigos quanto o mundo.  A imagem do deus-peixe surgia inúmeras vezes, rodeada por seus adoradores. Mas o que era aquilo em que estavam se transformando?

Lemuria jamais esteve morta. Ela apenas abandonou a miséria da superfície, indo para junto de seu senhor e protetor. Nossa linhagem persiste em Ula-Yhloa, e todas as outras cidades imortais onde vivemos sob a graça de nosso Pai Dagon.

Assaltada pelas memórias, Violka via que aquilo não era uma divindade de fato. Era uma criatura gigantesca e demoníaca, que nadava nas profundezas do éter e agora se manifestava na consciência do Maleko. O garoto e aquele horror ancestral estavam ligados de algum modo, e esse era um grilhão que ela não poderia romper.

-Foi por isso que fugiu, não é? Estava confuso e com medo. Por não ser como os outros de sua espécie, e pelo que a Ordem queria que se tornasse. Sua mente não é fraca como a deles. Você não é um escravo. Mas não sabe o que fazer com essa liberdade.

Violka falava para a escuridão ao seu redor, sem a certeza de que suas palavras chegariam ao Maleko que havia conhecido. Mas mesmo que a presença maior não diminuísse, ela sentia que ele ainda estava ali, tentando encontrar a si mesmo no olho da tempestade.

O infante é apenas uma concha. Dentro dele está a próxima geração de nossa raça abissal. Seu único propósito é reproduzir e transmitir seu sangue aos rebentos, tornando Lemuria ainda mais forte e expandindo os domínios de nosso Pai Dagon.

-Você sabe que não. Você sabe que pode dominar esse poder e escolher o que irá se tornar. Já conseguiu abrir seus olhos e fugir uma vez, então não há desculpa para se entregar agora!

Uma explosão de água atingiu Violka, e ela sentiu que seu corpo se afogaria ainda mais rápido. Sua maior luta era para se manter sã e consciente naquele turbilhão, que tentava levar embora sua mente como uma correnteza. E sua batalha finalmente estava começando a surtir efeito, pois a silhueta do Maleko surgia outra vez diante dela, falando dessa vez diretamente.

-Se queria me libertar, por que me trouxe aqui? Por que não me manteve longe do mar e dessa ilha? Eu já havia fugido, e tudo que fez foi me arrastar de volta até minha prisão.

-Se não tivesse lhe trazido até aqui, você ainda seria um escravo, mas da própria ignorância. – respondeu a capitã com serenidade, percebendo sua visão começar a ficar turva. – O medo do desconhecido é o pior dos medos, e desconhecer a si mesmo é estar aprisionado nele para sempre.

-E se eu resolver que sou mesmo um arauto de Dagon? E se eu quiser ficar com Lemuria e te arrastar para ser devorada por meus irmãos?

-Ficar com os que te criaram é escolha sua, mas você não vai me matar – ela dizia com um sorriso, já no limiar de sua consciência.

-Você diz que sou livre para qualquer coisa. Então o que me impede de te levar para as profundezas como um presente a Pai Dagon?

-Saber que se algum dia você desistir dessa vida, eu estarei lá em cima para te ajudar outra vez a achar um caminho.

Nesse momento o laço telepático se quebrou, e Violka se viu mais uma vez no salão submerso de Ula-Yhloa. Seu último fôlego se esvaiu e a inconsciência veio como um alívio para a dor em seus pulmões repletos de água.

Chuva de Outono caminhou até a cabine do Hummingbird, após a tripulação finalmente se livrar do fedor dos cadáveres dos híbridos-peixe. Abrindo a porta, ela viu Pesha folheando um dos livros da capitã. Seu rosto se entristeceu enquanto entrava, mas logo se iluminou em um sorriso ao ver Violka se remexendo na rede e murmurando.

-Que dor de cabeça...

Após o funeral de Stevo, os três estavam juntos outra vez, sentados no convés em meio a várias garrafas. Pesha explicava novamente como havia encontrado a capitã na praia, e como a ilha havia sido engolida pela maré alta pouco depois de terem sido resgatados pela tripulação, desaparecendo completamente.

-Todas as evidências se foram. Eles nunca vão me aceitar como um acadêmico do Império agora. – lamentava o rapaz.

-Você sabe que nunca precisou disso, Pesha. Vamos te levar até a capital e você vai provar de uma vez por todas que é tão digno quanto qualquer um que está lá!

O estudioso deu um sorriso tímido enquanto Violka se levantava lhe dando um tapinha no ombro. Então se ergueu mais confiante e perguntou.

-E depois? Para onde você vai?

Violka se debruçou na amurada do navio, olhando para o anoitecer no oceano como se procurasse por algo na imensidão.

-Eu descobri que o mar é a ainda maior do que pensava. Não vou esquecer as coisas que aconteceram lá embaixo, e você me conhece muito bem para saber que para mim um novo par de asas significa um novo céu para explorar, por mais sombrio e tempestuoso que ele seja.

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